No auge do verão, Paris 2024 não terá ar condicionado na Vila Olímpica; entenda impacto ambiental

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A Olimpíada de Paris 2024 se apresenta como exemplar no quesito ambiental e optou por não equipar a Vila Olímpica com ar condicionado. A decisão causou insatisfação de algumas delegações, como a do Brasil, já que as competições ocorrerão em pleno verão europeu. Com a medida, Paris busca expandir a reflexão sobre quando a climatização é realmente necessária, em um mundo em plena adaptação para enfrentar temperaturas que serão cada vez mais quentes. Lúcia Müzell, da RFI Brasil em Paris Em julho e agosto, os termômetros podem chegar perto dos 40°C na capital francesa, uma realidade relativamente nova para os habitantes da cidade. Conforme a Agência Parisiense do Clima, o número médio de dias com tempo canicular por ano – ou seja, com temperatura máxima superior a 31°C durante o dia – passou de 7,2 para 16,6, na comparação com os dados do fim do século 19. O aumento, mais acelerado a partir dos anos 2000, foi ainda mais impressionante nas medições do calor noturno: na última metade do século retrasado, fazia mais de 21°C apenas 0,2 noites por ano – e, agora, esse número subiu para cinco.O comitê de organização dos Jogos Olímpicos de Paris tomou este cenário em conta na construção da Vila Olímpica, com o que há de mais moderno em isolamento térmico dos prédios e sistemas naturais de resfriamento. A concepção do local garantiria uma temperatura máxima de 28°C nas instalações, mesmo nos dias mais quentes.Em caso de calor extremo, ventiladores serão distribuídos e aparelhos móveis de ar condicionado poderão ser instalados “nos quartos mais expostos”, explicou o comitê, por email à RFI. Paris 2024 se diz pronto para adaptar “medidas estritamente proporcionais às necessidades dos atletas”, se necessário.“A responsabilidade ambiental está no coração do nosso projeto desde a nossa candidatura”, salienta o texto. Delegações vão alugar ar condicionado por conta própriaOs argumentos, entretanto, não convenceram todas as delegações que participarão do evento. Estados Unidos, Canadá e Noruega já se prepararam para alugar aparelhos e equipar os seus alojamentos. O Brasil também fez essa escolha."A gente não tem como correr riscos para a performance dos nossos atletas. A gente não é uns Estados Unidos, uma China, que têm uma abundância de possibilidades de medalhas. As medalhas e as chances de medalhas que a gente tem, a gente precisa guardar e cuidar muito bem”, justifica Sebastian Pereira, gerente de Alto Rendimento e Jogos e Operações Internacionais do Comitê Olímpico Brasileiro (COB).O COB diz valorizar as iniciativas de sustentabilidade no esporte e não considera a decisão de Paris “exagerada”. Entretanto, alega que o descanso em boas condições é fundamental para o desempenho dos competidores, que treinaram por anos para chegar à Olimpíada. "A gente está pensando em poder dar ao atleta a melhor condição para ele poder performar”, explica Pereira.Por isso, não serão estabelecidas restrições para o uso do ar condicionado nas instalações do Brasil durante as competições. "Se a gente tiver uma temperatura avançada, o que a nossa área científica e médica nos colocam é que se estiver acima de 24°C no ambiente, a recuperação do atleta pode ser prejudicada e deficiente pra aquilo que a gente almeja. A gente não pode arriscar”, ressalta.Por que o ar condicionado é solução e problema ao mesmo tempoA refrigeração do ambiente não é só uma questão de conforto: também salva milhares de vidas de pessoas mais vulneráveis, como idosos, gestantes e bebês, e mantém o funcionamento de hospitais, supermercados e fábricas. Ainda é crucial para a vida digital, ao permitir o armazenamento e transferência de informações nos data centers.O grande paradoxo é que, ao mesmo tempo em que solucionam o problema das temperaturas elevadas em ambientes fechados, os aparelhos de refrigeração contribuem, e muito, para piorar o aquecimento global. Eles representam uma fonte importante de emissões de gases de efeito estufa que causam a desregulação do clima, por duas razões principais: o elevado consumo energético e o uso de fluidos refrigerantes, os hidrofluorcarbonos (HFCs).Esses químicos despejam, lentamente, gases com uma capacidade de aquecimento da atmosfera que chega a ser três mil vezes maior que o CO₂.Um relatório da Agência Internacional de Energia (AIE) indicou, em 2018, que os equipamentos eram responsáveis pela emissão de 1 bilhão de toneladas de CO₂ por ano. O número é significativo, na comparação com o total de 40 bilhões de toneladas emitidas no mundo.Além disso, o ar quente eliminado no procedimento de refrigeração de prédios e carros piora ainda mais o calor nos centros urbanos. Diferentes estudos científicos apontaram que este ar rejeitado chega a elevar até 2,4°C a temperatura do ar. O relatório da AIE antecipa que o resfriamento de casas e escritórios vai triplicar e será uma das principais causas do uso da energia até 2050. Além da alta das temperaturas, a ascensão econômica e social de potências populosas como China e Índia também impulsionarão este consumo.Refrigeração e justiça climáticaA reflexão sobre o acesso à climatização se insere nas discussões sobre justiça climática: apenas 15% das pessoas que vivem em lugares com clima quente se beneficiam da climatização. Em 2021, uma pesquisa internacional com a participação de cientistas brasileiros antecipou que até 100 milhões de famílias no Brasil, Índia, Indonésia e México não conseguirão atender às suas necessidades de refrigeração, sobretudo nas grandes cidades, que concentram calor."Se você não tem o dinheiro para comprar o ar condicionado ou pagar a conta de luz depois, você não consegue se adaptar ao clima. Temos uma complexidade grande de as pessoas que menos contribuíram para a mudança climática, que é a população de mais baixa renda, serem as que mais sofrer com essas mudanças”, afirma  a pesquisadora Talita Borges Cruz, do Instituto de Pós-Graduação e Pesquisa em Engenharia (Coppe/ UFRJ), uma das participantes do estudo."É claro que durante o verão é bem quente lá, mas para eles o maior problema é o aquecimento no inverno, e para a gente é o contrário. A gente quer resfriar e com as ondas de calor, ficou ainda mais evidente essa necessidade, o quanto isso demanda de energia”, analisa. Na Europa, apesar do aumento da consciência ambiental e de, culturalmente, os europeus serem avessos ao uso do ar condicionado, essa rejeição tem ficado para trás diante do desconforto das temperaturas mais elevadas. Em 2018, cerca de 90% dos lares americanos eram equipados, contra 19% dos europeus. Mas a AIE antecipa que o número deve quadruplicar na Europa até meados do século.Talita Rodrigues avalia que essa desigualdade também se reflete na decisão de Paris 2024 de não instalar os aparelhos em toda a Vila Olímpica, mas permitir que as delegações o façam por conta própria."É um paralelo com a realidade que a gente vive: as comitivas que têm recursos terão seus atletas, teoricamente, mais descansados do que os das outras que não têm os recursos para instalar o ar condicionado”, destaca Cruz.Foco deveria ser cumprir metas climáticasA pesquisadora também avalia que, ao direcionar a responsabilidade para o usuário, os governos continuar a se eximir das próprias responsabilidades de atingir as metas climáticas que assumiram nos tratados internacionais."Claro, cada pessoa tem que fazer a sua parte e ter consciência, mas eu acho que a conversa é mais ampla. Você acaba jogando a responsabilidade no mais fraco, ao invés de olhar para a sua matriz elétrica, como essa energia é fornecida para o ar condicionado”, salienta a especialista. "O mais importante é a gente poder chegar lá na frente com um clima em que as pessoas não precisem consumir tanto ar condicionado”, indica.A Agência Internacional de Energia e as Nações Unidas pedem “urgência” no desenvolvimento de aparelhos com maior eficiência energética e menor impacto ambiental, inclusive que não possam mais ser regulados para resfriar menos do que a 24°C.Os dois organismos também salientam a importância dos investimentos em técnicas de construção que limitam o calor, como imóveis melhor planejados para favorecer a circulação do ar e preservar o isolamento térmico e telhados arborizados, além do aumento das áreas verdes nas cidades.

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